quarta-feira, maio 10, 2006

______febre terçã_____________


Neste momento há infinitas possibilidades, horas inteiras à sua frente. A sua mente fervilha. Esta manhã talvez consiga penetrar no obscurecimento, nos canos entupidos, chegar ao ouro. Sente isso dentro dela, um quase indescritível segundo eu, ou melhor, um eu paralelo e mais puro. Se fosse religiosa, chamar-lhe-ia alma. É mais do que a soma do seu intelecto e das suas emoções, mais do que a soma das suas experiências, embora corra como veias de metal brilhante por todas essas três coisas. É uma faculdade interior que reconhece os mistérios estimuladores do mundo porque é feita da mesma substância, e, quando a sorte a bafeja muito, ela consegue escrever directamente através dessa faculdade. Escrever em semelhante estado é a mais profunda satisfação que conhece, mas o seu acesso a ele vem e vai sem avisar. Pode pegar na caneta e segui-la com a mão enquanto ela se move pelo papel; pode pegar na caneta e descobrir que é meramente ela própria, uma mulher de roupão segurando uma caneta, receosa e hesitante, apenas moderadamente apta, sem nenhuma idéia acerca de por onde começar ou do que escrever.
excerto de As Horas, de Michael Cunningham.


É bem provável que, mesmo agora, com dezenas de teclas a meu dispor, eu esteja hesitante quanto ao que “escrever”. Pior ainda, é certo não saber se é direito. Uma comoção assoma neste instante em que sei que já não posso mais me furtar o deleite exasperado que somente o livrar-me de uma idéia, ao dar-lhe roupa de palavra, pode ter.

Meus dias sem uma rotina, propriamente dita e exaltada de forma estentória pelo imaginário coletivo, trazem meus pensamentos sempre febris, impelindo meus olhos a se abrirem, a se arregalarem mesmo, para assim, talvez, eu enxergar mais do que vejo. Não obstante, quem produz tal efeito é a inflamação na minha mente e, assim sendo, acabo por enxergar com candura o que não me fora ofertado, meus olhos piscam flamejantes, iracundos, com uma ofensa que não me fora dirigida... Seria mais preciso dizer, por certo, que vivo embebida em estados de ânimo espasmódicos e, se me coloco como agente da passiva, é porque disso não tenho passado: não são os estados de ânimo de Aline e, sim, a Aline dos estados de ânimo diversos...

De quando em vez, ponho as costas da mão esquerda sobre meu pescoço para me certificar de que o meu corpo também vivencia a mesma febre terçã, e me pego sorrindo mesmo antes de uma pele encontrar a outra para a citada certificação. E nisso de sentir febre sem o corpo sabê-lo, e nisso de sorrir disso, e nisso de ousar descrever isso de sentir e de sorrir de algo que não se pode comprovar, meus olhos inexoravelmente hão de marejar como se eu tivesse encontrado alguém que eu amo muito mas partiu como se para sempre e que agora eu avistasse caminhando na minha direção.

Sabe o quê mais? Eu quero amar essa visitante imaginária. Não, não, acabo de convencer-me de que a amo mesmo. Dei a ela cores e estatura, gestos e mãos, sombras e um desenho de traçado firme. Como qualquer mulher, ela tem uma história pintada na retina e muitas outras por trás e de algumas delas não me será dada notícia. Como a mulher que caminha para mim, tudo o que ela diz, ainda o que da boca não sair, é colhido com zelo ora de quem guia com maestria, ora de quem tateia o que não sabe que lá está.

Essa mulher conserva a pele sempre quente de tal maneira que a minha, que também deveria ser quente, teima em não o ser só para suplicar ainda mais os calores do corpo dela. Ela diz que eu devo ser sempre dela e pede que eu jure só suplicar assim por ela. Não tenho outra alternativa senão jurar de olhos risonhos e dizer que sim, mas que idéia, quem mais eu poderia querer? Juro e digo numa mentira escancarada que, ao invés de profanar meu juramento, só o doura de emolumentos e bálsamos.

Porque essa mulher que veio recostar sua cabeça majestosamente indecifrável em meus travesseiros para abrir meus poros aos suores, minhas pernas aos frêmitos e meus ouvidos aos apelos, não estará aqui quando eu acordar (e pode ser que se desembarace das minhas pernas no meio da noite), mas, com efeito, já é minha como eu sou da febre...